O doce de Leite, delícia que arrebata fãs por todo o mundo, é também objeto de controvérsia culinária sobre sua origem

Pergunte a qualquer brasileiro quem inventou o doce de leite. Certamente, a resposta será o Brasil, e mais especificamente Minas Gerais, com sua tradição em irresistíveis doces caseiros e grande produção láctea. Agora, experimente pesquisar no Google “origem do doce de leite”. O resultado trará mais de 17 milhões de respostas, algumas confirmando que sim, ele vem do Brasil, outras da Argentina, outras tantas do Uruguai, e por aí vai. Não faltam países reivindicando a criação da popular sobremesa que vai bem com tudo, seja degustado puro, com queijo, sorvetes ou como recheio de bolos, sonhos, carolinas e churros, nas diferentes consistências. A controvérsia culinária que se espalha pela internet e pelas cozinhas acontece porque há lendas demais e documentação de menos sobre a primeira vez que alguém teve a brilhante ideia de apurar leite e açúcar no fogo até obter essa iguaria dourada e cremosa.

Disputa acirrada em narrativas divertidas

A Argentina sai na frente quando o quesito é a frequência e a visibilidade na briga pela autoria dessa iguaria. À pergunta “quem inventou o doce de leite”, o próprio Google afirma ser Juan Manuel de Rosas, um político argentino do século XIX. Mas basta começar a ler os diversos relatos para encontrar furos e confusões que acabam divertindo quem tenta seguir o fio da meada. Segundo relata o historiador argentino Daniel Balmaceda, no livro “A comida na história argentina”, a lenda afirma que o doce foi inventado em 1829, quando a cozinheira de Rosas, que era então governador da Província de Buenos Aires, esqueceu o leite com açúcar no fogo, na ocasião em que o patrão assinava com o opositor Juan Lavalle o Pacto de Cañuelas, que pôs fim a uma guerra civil. Ao voltar, constatou que a mistura tinha se transformado em um creme pastoso e com ótimo sabor, e que foi servido aos dois generais. Outras fontes descrevem que quem estava esquentando o leite era o próprio Rosas, em uma tarde fria de inverno, e que ele é que teria esquecido a preparação no fogo quando foi atender a porta. Será?

No Uruguai, a versão é que o doce de leite foi desenvolvido no país pelos escravos que chegaram àquelas terras para trabalhar, e depois a receita acabou se espalhando para as famílias de colonizadores. A história na França é similar à da Argentina, mas o esquecimento do leite com açúcar no fogo, que era usado como ração dos soldados, teria sido protagonizado por um cozinheiro assustado com o barulho das batalhas, durante as guerras comandadas por Napoleão Bonaparte. Nesse caso, o fato teria acontecido duas décadas antes do episódio na Argentina. Já o Chile garante que foi lá que o militar argentino San Martín, responsável por liderar a libertação do país da dominação espanhola, experimentou o doce pela primeira vez, em 1817.

No Brasil, há quem diga que o doce de leite surgiu em terras nacionais no período colonial, fruto da cultura gastronômica de regiões com grande produção leiteira, como o estado de Minas Gerais, e impulsionado pela rápida expansão da produção de sacarose de cana-de-açúcar, no século XVI. Nessa época, o açúcar passou a ser utilizado como conservante de diversos produtos orgânicos, como o leite de vaca e de cabra.

Pensa que acabou? Contrariando todas essas versões, é possível ainda encontrar estudiosos que lembram que, na Índia, misturar leite com mel e levar ao fogo para fazer uma espécie de creme sempre foi uma prática milenar, e que a origem do concorrido doce seria asiática, e não europeia ou latino-americana. Em resumo, tem versão para todos os gostos e nacionalidades!

Patrimônio cultural de quem mesmo?

Não basta se afirmar como o dono da receita, tem que colocar no papel. Em 2003, a Argentina solicitou à Organização Mundial do Comércio (OMC) que o doce de leite fosse oficializado como patrimônio cultural alimentar e gastronômico argentino. O Uruguai acionou então a Unesco, defendendo que o doce na verdade era um patrimônio da região do Rio da Prata. Depois de muita discussão, o doce de leite foi considerado como patrimônio cultural e gastronômico dos dois países. Alheia à contenda internacional, na cidade pernambucana de Afrânio, é também considerado oficialmente patrimônio local. Em mais um movimento para se apropriar do quitute, os argentinos criaram o “Dia Mundial do Doce de Leite”, comemorado em 11 de outubro.

Rivalidades à parte, atualmente Argentina, Uruguai e Brasil são os maiores produtores mundiais de doce de leite e existe até mesmo um regulamento técnico do Mercosul para a Identidade e Qualidade de Doce de Leite. Datado de 1996, aponta todos os critérios para a fabricação do verdadeiro doce de leite, incluindo até mesmo a coloração desejada de “castanho caramelado”. Na hora de colocar a colher no tacho, os latino-americanos também não se fazem de rogados. Os argentinos consomem cerca de três quilos dessa delícia por pessoa no ano, enquanto os uruguaios chegam a quatro quilos. Por aqui, não temos estatísticas exatas, mas pesquisa da Embrapa Gado de Leite/Centro de Inteligência do Leite realizada em 2021, com 5.105 consumidores de todo o país, apontou que 63% costumam comprar regularmente essa sobremesa. Quem resiste?