A feijoada pode não ser uma criação genuinamente nacional, mas com os nossos ingredientes, tornou-se o prato mais representativo do país
Feijão-preto, carne bovina e várias partes do porco. Você já deve estar familiarizado com o prato que leva estes ingredientes como base, nossa aclamada feijoada. Tal como o samba, o futebol e a caipirinha, a feijoada é uma das maiores representantes da cultura e dos costumes brasileiros, talvez o prato que melhor simbolize nossa culinária.
Sobre sua origem, você, com certeza, já ouviu falar que ela foi criada na senzala, pelos escravos, com os restos de carnes dados pelos seus senhores. Entretanto, esta versão é muito rebatida por historiadores e especialistas. Segundo o historiador e mestre em História Moderna e Contemporânea, Rodrigo Elias, em seu artigo “Feijoada: breve história de uma instituição comestível”, estas partes descartadas do porco (orelhas, pés e rabos), ao contrário do que nos foi pregado, nunca foram consideradas partes menos nobres e jogadas fora – ou dadas aos escravos –, pelo contrário, eram bastantes apreciadas e consumidas pelos europeus. Além disso, na época, com a escassez e preço elevado dos alimentos, dificilmente desperdiçava-se comida. A alimentação básica nas senzalas era uma mistura de feijão com farinha, um hábito alimentar de herança indígena.
A feijoada teria sido, então, o resultado de técnicas culinárias europeias, já que, na Europa, os cozidos são comuns, como o cassoulet francês, o cozido madrilenho e a fabada asturiana, na Espanha, e a casseruola ou casserola milanesa, na Itália. A origem mais provável da feijoada é de que o prato é um cozido português – que já fazia a mistura de tipos de carne – que foi adaptado ao chegar aqui no Brasil, com a inserção do feijão-preto, que era uma base importante da alimentação da época no país.
Feijoada e Movimento Modernista?
O contexto Modernista também colaborou para o firmamento da feijoada como símbolo cultural do país, sendo que expoentes modernistas faziam menção a ela ou ao feijão – alimento nacional que foi um elemento muito importante e amplamente referenciado no projeto Modernista – em suas obras.
Um exemplo é “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade, em que o anti-herói é retratado se alimentando de feijão.
Segundo Carlos Alberto Dória, em “Culinária e alta cultura no Brasil”, de 2012, o feijão se transformou “na expressão mais clara do patrimônio culinário brasileiro e da sua dinâmica”. Com isso, a feijoada (em que o feijão é ingrediente-base) foi se consagrando como um bem nacional, um dos pratos de identidade da cultura alimentar brasileira.
Segundo a obra “História da alimentação no Brasil” (1967), do historiador brasileiro Câmara Cascudo, a feijoada brasileira, da qual se subentende a receita de feijão-preto com a adição de carnes, é do século XIX. É claro que, em um país tão extenso em território e plural em costumes, o prato foi sendo modificado ao longo do tempo e de acordo com o regionalismo, com a substituição de alguns ingredientes e adição de outros acompanhamentos. De modo geral, a base do prato é composta pelo feijão-preto, em que se acrescentam carne-seca bovina, pés, orelhas, rabo e pele de porco, e embutidos como linguiça e paio. Como acompanhamento, arroz branco, couve refogada, farinha de mandioca e fatias de laranja – lembrando que não é de lei, podem variar conforme a região.
O prato representa, de certo modo, o próprio povo brasileiro, sendo uma contribuição dos europeus, com a técnica dos cozidos, e dos escravos e indígenas, com os hábitos alimentares em que a farinha e o feijão estavam presentes. Com isso, temos a feijoada, que é resultado da técnica europeia com materiais brasileiros.
O fato é que, independentemente da versão verdadeira de sua origem, a feijoada enraizou-se na cultura e na mesa dos brasileiros, quebrando barreiras de grupos sociais. Sua relevância é tanta que o prato é tombado no Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, desde 2013. A “feijoada carioca” tem a chancela de origem neste território. Mas muito antes mesmo deste reconhecimento, a feijoada já era considerada, pelos próprios brasileiros, como nosso patrimônio.