Cada país tem doces clássicos como parte da culinária típica, que revelam e representam a cultura gastronômica da região
Quem não ama um docinho? Inquestionavelmente, os doces sabem como encantar o paladar, seja a partir de uma sobremesa carregada de ingredientes ou de um simples brigadeiro. E, desde sempre, o universo da confeitaria se aventura nas múltiplas possibilidades das receitas que levam, principalmente, o açúcar como base.
Muito presente na culinária como um todo, o ingrediente pode servir na composição básica de massas e bolos, recheios, frutas em caldas, caramelo, entre outros. O açúcar é utilizado desde o início do processo de preparação até a finalização da receita – e a relação das pessoas com ele é muito mais profunda do que parece.
Pesquisas mostram que o açúcar proporciona prazer afetivo na maioria das pessoas devido àliberação, pelo cérebro, de opioides, substâncias químicas naturais que dão a sensação de imensa satisfação. Consequentemente, o ingrediente é capaz de desencadear sensações de prazer e felicidade, o que faz com que muitas pessoas sejam grandes fãs de doces.
Além do sabor: uma cultura
Assim como os pratos salgados, os doces também estão diretamente relacionados às memórias, culturas e tradições de um povo. Afinal, é por meio das receitas, sejam à base de sal ou açúcar, que há um registro histórico da alimentação e dos modos de preparo, passados de geração em geração, que revelam as particularidades de culturas familiares, locais e regionais.
O Chef de Pâtisserie, Salvador Ariel Lettieri, acredita que os doces expõem “totalmente” as preferências do paladar de uma comunidade, e, ao redor do mundo, os países ostentam clássicas e tradicionais receitas doces. Segundo o Chef Pâtissier Luiz Farias, há diversas opções de confeitaria espalhadas pelo globo terrestre: “O mundo da confeitaria é encantador, a cultura é milenar, e existem grandes referências mundiais tradicionais e muito queridas”.
Farias também cita exemplos de doces típicos, como Floresta Negra e Berliner, da Alemanha, Tiramissu e Canole, da Itália, Mousse e Crème Brûlée, da França, Waffle e Chocolate Belga, da Bélgica, Cheese Cake e Brownie, dos Estados Unidos, Pastel de Belém e Queijada, de Portugal, e Torta Sacher e Apfelstrudel, da Áustria. No Brasil, é possível destacar o clássico e querido: brigadeiro.
“Invariavelmente, há muita história para explicar as preferências de uma determinada cultura. Aqui, por exemplo, diria que o paladar dos brasileiros tende para doces mais açucarados, chocolate ao leite e variedade de frutas”, fala Lettieri.
Ele continua: “Os franceses preferem doces mais equilibrados, com menor intensidade de açúcar, utilizando muito chocolate meio amargo ou amargo de alta qualidade, e também muitas frutas e castanhas, como o pralinê e a pasta de pralinê. Na Espanha, é a mesma linha da França, porém eles adicionam canela, amêndoas e azeite de oliva. Já no Marrocos, os doces são bem diferentes; pois se utiliza água de flor de laranjeira, frutas secas, pistache, tâmaras e até chás, além dos aromas naturais”.
Origem do Macaron
Apesar da sua fama relacionada à França, o macaron é um doce da Itália que chegou ao território francês em 1533 quando os chefs italianos de Catherine de Médici levaram o doce para o cardápio do casamento dela com Henry II. Inicialmente, a receita era composta apenas por sua massa de amêndoa. Mais tarde, no século XX, também na França, Pierre Desfontaines somou recheio à ideia original e garantiu que o ex-biscoito se tornasse um doce mundialmente conhecido.
Relação do Brasil com o açúcar
A cultura gastronômica brasileira, incluindo a confeitaria, é fruto da colonização e da vinda dos imigrantes, que fizeram com que os costumes trazidos de fora fossem mesclados aos dos nativos do Brasil. Vale lembrar, ainda, que o açúcar é um commodity de enorme destaque de produção em território nacional – e o ingrediente sempre foi extremamente importante, ultrapassando diferentes culturas.
Portanto, a relação do Brasil com os doces é intrínseca, principalmente devido à ligação do país com a produção de cana-de-açúcar. Farias explica: “O Brasil é um grande destaque quando falamos de consumo de doces. Nossa história está muito ligada ao desenvolvimento da cana […]. E, com a vinda dos chefs europeus, ocorreu uma grande evolução no processo de desenvolvimento da confeitaria no país. Os brasileiros amam doces, em especial o brigadeiro, um doce típico brasileiro”.
O Chef conta que, os países que mais influenciaram o desenvolvimento da confeitaria no Brasil são os europeus, como a Itália, a França, a Espanha e a Alemanha.
Farias pontua que as referências desses lugares fizeram a diferença na cultura confeiteira brasileira, visto que os chefs da Europa “trouxeram novos conceitos e novas receitas, agregando grande variedade e qualidade”.
Doces no Brasil e o brigadeiro
Não é possível falar sobre doces brasileiros sem citar o tradicional e amado brigadeiro. Essa receita saborosa está inserida em uma série de ocasiões, como aniversários, reuniões, festas ou apenas para acompanhar uma tarde de maratona de séries. E, de fato, é o doce mais consumido em solo nacional.
Luiz Farias conta que o desenvolvimento da receita começou depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na época, no Brasil, era muito difícil encontrar leite fresco e açúcar para a produção dos doces. Como consequência, a história relata que foi então que descobriram o sabor delicioso da mistura do leite com o chocolate cozido.
Segundo o Chef, o nome “brigadeiro” também surgiu no mesmo período, quando era eleição para presidente da república e um dos candidatos era o Brigadeiro Eduardo Gomes. “Na época, foi realizada uma Campanha criativa: ‘Vote no Brigadeiro que é bonito e solteiro’. Ficou na boca do povo e os eleitores batizaram o doce em sua homenagem. O candidato conseguiu um grande número de fãs em São Paulo”, explica Farias.
Hoje em dia, fazer um brigadeiro comum é fácil, sendo uma prática muito presente no dia a dia dos brasileiros. Até porque, para o doce, é preciso de apenas uma caixa de leite condensado, uma colher (sopa) de margarina sem sal e sete colheres (sopa) de achocolatado. É claro que, devido à popularidade, a receita ganhou diferentes formas e adaptações – e cada um escolhe a sua favorita.
Luiz Farias
Chef Pâtisserie com longa trajetória, Luiz Farias é destaque quando o assunto é a confeitaria, visto que o chef se aperfeiçoou na carreira a partir de treinamentos na Europa, o berço da confeitaria mundial. Além disso, estudou na melhor escola do mundo, a Lenôtre, em Paris. O profissional foi vice-campeão da Copa do Mundo de Confeitaria, na Europa, em 2000. Ao longo da vida, Farias escreveu diversos livros para a área. Por conta das obras “Confeitaria Nacional” e “Padaria Brasil”, foi nomeado o melhor Chef Pâtisserie do mundo em 2016 pela entidade mundial UIBC, International Union of Bakery and Confictioners.
A França e o Crème Brûlée
“Quando o assunto é pâtisserie e doces, os franceses são especialistas”, declara Salvador Ariel Lettieri. O Chef conta também que: “Com a tradição secular na arte da confeitaria, a França é referência mundial, e muitas de suas receitas são consideradas patrimônio cultural do país, além de símbolo de tradição, conhecimento e respeito pelo ofício”.
“Tudo isso faz da nação uma admiradora incondicional da arte confeiteira. O mercado francês tem muita variedade de produtos, incluindo os importados, e a França continua a ser um dos mercados mais interessantes para os produtos de cacau e chocolate. Existe uma longa tradição de consumo no país. Eles fabricam e importam matérias-primas para produzir os melhores chocolates, as melhores manteigas, o melhor açúcar e a melhor polpa de frutas do mundo. Sem contar o savoir faire, que é a técnica e o conhecimento desenvolvidos e aprimorados ao longo de muitos anos”, explica.
O Crème Brûlée é um dos principais doces franceses e tem a origem datada na própria França, no ano de 1691, com uma receita à base de gemas de ovos e leite, acompanhados de uma pitada de farinha. Atualmente, seu preparo segue com a mesma proposta original, trazendo um toque de baunilha com uma casquinha crocante por cima.
Salvador Ariel Lettieri
Atualmente como parte do time da Le Cordon Bleu (Rio de Janeiro e São Paulo), o Chef Sênior de Pâtisserie, Salvador Ariel Lettieri, começou a carreira aos 14 anos em Buenos Aires, trabalhando em uma confeitaria de um amigo do pai. Já no ano seguinte, passou a cursar decoração de bolos de casamento com Marta Ballina.
“Os argentinos são grandes consumidores de doces, croissants com doce de leite, media lunas com creme pâtissier e o clássico Alfajor. Acredito que cercado por essa cultura, tornei-me um curioso da produção dessas delícias”, conta o chef.
Com mais de 30 anos de experiência, esteve em vários países e trabalhou em diferentes empresas, como a Lenôtre Paris e o Grupo Accor. A formação de Lettieri concedeu-lhe o título de Chef Sênior de Pâtisserie e Boulangerie da Le Cordon Bleu de São Paulo. Além disso, o profissional foi premiado com o 2.º lugar na Copa de Confeitaria da Espanha e o 4.º lugar no concurso Açúcar em Belfort, na França.
O Pastel de Belém português
Tradicional doce português, o Pastel de Belém adora um mistério. Apesar da fama, a história de origem do doce ainda é baseada em lendas, e a principal aponta que a receita surgiu no início do século XIX como criação de monges do Mosteiro dos Jerônimos, em Belém, atual bairro de Lisboa.
Os pastéis eram vendidos na confeitaria de Domingos Rafael, e, na época, a região não fazia parte da capital portuguesa. No entanto, o local era bastante conhecido devido ao Mosteiro dos Jerônimos e à Torre de Belém, atraindo muitos visitantes. Com os turistas consumindo e propagando esse doce, a receita ganhou sua fama, mas sua origem segue misteriosa.
Embora muitas confeitarias e profissionais tenham tentado descobrir a receita, ela é, até hoje, preservada por mestres, que precisam de um acordo de confidencialidade para não repassarem os segredos do doce. Os atuais donos da “antiga confeitaria de Belém”, atualmente chamada “Pastéis de Belém”, não revelam a receita e, inclusive, não abrem filias ou trabalham com franquias para não correrem o risco de perder o mistério.
E vale lembrar que, os Pastéis de Belém clássicos são apenas os doces da receita original – a que está em segredo. Produzidos tanto em Portugal quanto em outros lugares do mundo, os outros pastéis que tentam reproduzir o doce tradicional, embora levem o mesmo nome, são os “pastéis de nata”.