O doce de Leite, delícia que arrebata fãs por todo o mundo, é também objeto de controvérsia culinária sobre sua origem
Pergunte a qualquer brasileiro quem inventou o doce de leite. Certamente, a resposta será o Brasil, e mais especificamente Minas Gerais, com sua tradição em irresistíveis doces caseiros e grande produção láctea. Agora, experimente pesquisar no Google “origem do doce de leite”. O resultado trará mais de 17 milhões de respostas, algumas confirmando que sim, ele vem do Brasil, outras da Argentina, outras tantas do Uruguai, e por aí vai. Não faltam países reivindicando a criação da popular sobremesa que vai bem com tudo, seja degustado puro, com queijo, sorvetes ou como recheio de bolos, sonhos, carolinas e churros, nas diferentes consistências. A controvérsia culinária que se espalha pela internet e pelas cozinhas acontece porque há lendas demais e documentação de menos sobre a primeira vez que alguém teve a brilhante ideia de apurar leite e açúcar no fogo até obter essa iguaria dourada e cremosa.
Delícia Tradicional
No BigLar, você encontra o os deliciosos doces de leite argentinos da San Ignacio, um dos mais famosos do mundo, tanto por sua qualidade quanto por seu sabor inigualável.
Sinônimo de cremosidade e tradição há quase 80 anos, a San Ignacio é atualmente uma das principais indústrias de laticínios do país vizinho. A fábrica, localizada em Rosário, maior cidade da província de Santa Fé, na região central da Argentina, chega a processar mais de 27 milhões de litros de leite a cada ano para dar conta da demanda, ao lado dos queijos e ampla linha de produtos frescos.
Disputa acirrada em narrativas divertidas
A Argentina sai na frente quando o quesito é a frequência e a visibilidade na briga pela autoria dessa iguaria. À pergunta “quem inventou o doce de leite”, o próprio Google afirma ser Juan Manuel de Rosas, um político argentino do século XIX. Mas basta começar a ler os diversos relatos para encontrar furos e confusões que acabam divertindo quem tenta seguir o fio da meada. Segundo relata o historiador argentino Daniel Balmaceda, no livro “A comida na história argentina”, a lenda afirma que o doce foi inventado em 1829, quando a cozinheira de Rosas, que era então governador da Província de Buenos Aires, esqueceu o leite com açúcar no fogo, na ocasião em que o patrão assinava com o opositor Juan Lavalle o Pacto de Cañuelas, que pôs fim a uma guerra civil. Ao voltar, constatou que a mistura tinha se transformado em um creme pastoso e com ótimo sabor, e que foi servido aos dois generais. Outras fontes descrevem que quem estava esquentando o leite era o próprio Rosas, em uma tarde fria de inverno, e que ele é que teria esquecido a preparação no fogo quando foi atender a porta. Será?
No Uruguai, a versão é que o doce de leite foi desenvolvido no país pelos escravos que chegaram àquelas terras para trabalhar, e depois a receita acabou se espalhando para as famílias de colonizadores. A história na França é similar à da Argentina, mas o esquecimento do leite com açúcar no fogo, que era usado como ração dos soldados, teria sido protagonizado por um cozinheiro assustado com o barulho das batalhas, durante as guerras comandadas por Napoleão Bonaparte. Nesse caso, o fato teria acontecido duas décadas antes do episódio na Argentina. Já o Chile garante que foi lá que o militar argentino San Martín, responsável por liderar a libertação do país da dominação espanhola, experimentou o doce pela primeira vez, em 1817.
No Brasil, há quem diga que o doce de leite surgiu em terras nacionais no período colonial, fruto da cultura gastronômica de regiões com grande produção leiteira, como o estado de Minas Gerais, e impulsionado pela rápida expansão da produção de sacarose de cana-de-açúcar, no século XVI. Nessa época, o açúcar passou a ser utilizado como conservante de diversos produtos orgânicos, como o leite de vaca e de cabra.
Pensa que acabou? Contrariando todas essas versões, é possível ainda encontrar estudiosos que lembram que, na Índia, misturar leite com mel e levar ao fogo para fazer uma espécie de creme sempre foi uma prática milenar, e que a origem do concorrido doce seria asiática, e não europeia ou latino-americana. Em resumo, tem versão para todos os gostos e nacionalidades!
Você Sabia?
Quem costuma experimentar doce de leite das mais variadas procedências já percebeu que, embora o documento do Mercosul estipule a cor “castanho caramelado” como a ideal para a iguaria, o doce pode ser mais claro ou mais escuro conforme a região. Enquanto doces de leite argentinos ou uruguaios são mais escuros, por exemplo, os procedentes de Minas Gerais são um pouco mais claros, de acordo com as preferências dos consumidores de cada região. Para chegar à tonalidade que é mais apreciada, os fabricantes controlam a evaporação do leite com sacarose, obtendo assim a coloração, consistência e sabor característicos. É nesse processo que ocorre a chamada Reação de Maillard, ou seja, a interação entre um aminoácido ou proteína e um carboidrato redutor que, ao serem aquecidos a mais de 40 ºC, provocam o escurecimento da preparação e conferem seu aspecto dourado. No momento da produção, esse escurecimento pode ser intensificado com a adição de outros ingredientes, como o bicarbonato de sódio e a glicose.
Patrimônio cultural de quem mesmo?
Não basta se afirmar como o dono da receita, tem que colocar no papel. Em 2003, a Argentina solicitou à Organização Mundial do Comércio (OMC) que o doce de leite fosse oficializado como patrimônio cultural alimentar e gastronômico argentino. O Uruguai acionou então a Unesco, defendendo que o doce na verdade era um patrimônio da região do Rio da Prata. Depois de muita discussão, o doce de leite foi considerado como patrimônio cultural e gastronômico dos dois países. Alheia à contenda internacional, na cidade pernambucana de Afrânio, é também considerado oficialmente patrimônio local. Em mais um movimento para se apropriar do quitute, os argentinos criaram o “Dia Mundial do Doce de Leite”, comemorado em 11 de outubro.
Rivalidades à parte, atualmente Argentina, Uruguai e Brasil são os maiores produtores mundiais de doce de leite e existe até mesmo um regulamento técnico do Mercosul para a Identidade e Qualidade de Doce de Leite. Datado de 1996, aponta todos os critérios para a fabricação do verdadeiro doce de leite, incluindo até mesmo a coloração desejada de “castanho caramelado”. Na hora de colocar a colher no tacho, os latino-americanos também não se fazem de rogados. Os argentinos consomem cerca de três quilos dessa delícia por pessoa no ano, enquanto os uruguaios chegam a quatro quilos. Por aqui, não temos estatísticas exatas, mas pesquisa da Embrapa Gado de Leite/Centro de Inteligência do Leite realizada em 2021, com 5.105 consumidores de todo o país, apontou que 63% costumam comprar regularmente essa sobremesa. Quem resiste?