Pães artesanais preparados com levain oferecem sabores e texturas diferenciados, reunindo nutrição saudável‘ tradição e prazer de comer bem
“Caminhar de pé no chão, passar manteiga no pão bem quentinho para derreter, um cafezinho para beber, a família reunida… as coisas simples da vida nos dão força para viver.” No trecho do poema de Bráulio Bessa, tão adequado aos tempos desafiadores que passamos, misturam-se gostosas lembranças, cheirinho de saudade de casa e sabor de alegria: não há alimento que simbolize melhor o cuidado, o afeto e a união do que o pão. Se preparado sem pressa, de forma artesanal e com fermentação natural, com os segredos que só a tradição guarda, melhor ainda. É o que, cada vez mais, os brasileiros estão descobrindo. A tendência de busca por este tipo de produto já era registrada pela ABIP (Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria) desde 2019, em um setor que movimenta, anualmente, mais de R$ 90 bilhões, atrelada à demanda da sociedade por uma alimentação mais natural e saudável, com o resgate de antigas preparações. Mas, durante o isolamento social provocado pela pandemia, expandiu-se e invadiu as redes sociais, com todo mundo querendo aprender a fazer o seu pão ou buscando novas alternativas no mercado, com direito até mesmo a hashtag (#Pãodemia) no Instagram.
“Novidade” do tempo dos seus avós – ou bisavós
A preocupação com hábitos mais saudáveis, assim como a escolha de ingredientes frescos e menos industrializados à mesa, faz parte da evolução da sociedade moderna, mas o uso de fermentação natural para a elaboração dos pães é tão antigo como a própria iguaria que, dizem os estudiosos, surgiu lá pelos 4 mil anos a.C., pelas mãos dos egípcios e hebreus. Neste processo milenar, o fermento é criado a partir de água, farinha, leveduras naturais e muita, mas muita paciência, mesmo, para dar tudo certo. O resultado compensa: um produto mais saboroso, com miolo mais leve e aerado, casquinha mais firme e crocante. Não à toa, diz a lenda que o imperador Júlio César mantinha sua popularidade distribuindo pães para a população de Roma, onde se contavam centenas de padarias já em 46 a.C. Especulações históricas à parte, os benefícios para saúde são igualmente inegáveis: oferece digestão mais fácil, índice glicêmico mais baixo que outros tipos de pães e proporciona maior índice de nutrientes.
Já a mencionada paciência, essa é de lei, desde a elaboração do fermento natural, também chamado de levain (em francês), sourdough (em inglês) ou massa madre (espanhol), que é simples, mas exige procedimentos constantes e o tempo adequado para chegar no ponto certo. Em seguida, todo o processo de preparação do pão, propriamente dito, também exige muita calma. Os pães levain produzidos pelo BigLar com farinha francesa podem demorar de 24 a 28 horas para ficarem prontos, contando com cerca de cinco horas para fazer as massas e, depois, em torno de 21 horas para que a fermentação aconteça lentamente em baixas temperaturas, o que ajuda a garantir parte dos aromas e texturas dos miolos de cada tipo de pão. Na sequência, todas as receitas são assadas na pedra do forno de lastro, deixando a casca bem crocante. E o bacana é que dá para utilizar este processo tanto nas opções com massa branca, como o pão baguete ou ciabatta, que possuem miolo macio e alvéolos grandes, como em massas enriquecidas com grãos e outros ingredientes especiais, que apresentam um miolo mais denso e alvéolos pequenos, como os deliciosos pão de cacau e raspas de laranja, pão de figo turco, pão integral levain, pão italiano em formato filão e bola, e o irresistível pão de nozes com gorgonzola, um dos mais queridos pelos clientes do BigLar. Para conservar melhor, depois de tanta espera, é aconselhável manter os pães devidamente embrulhados em papel para que não ressequem ou endureçam rápido, mas, se isso acontecer depois de alguns dias, a dica é passar um pouquinho de água e deixar alguns minutos em forno quente para recuperar o frescor.
Sabia que existe uma “biblioteca” criada para classificar e armazenar os diferentes tipos de fermentos naturais existentes ao redor do mundo? Inaugurada em 2013, na Bélgica, a Sourdough Library já conta com um acervo de 124 diferentes levain originários de 21 países, incluindo o Brasil, devidamente conservados pelo padeiro e “bibliotecário” Karl de Smedt.
Amostras do valioso fermento natural criado e cultivado pelas padarias paulistanas Basilicata, Cepam, Benjamim A Padaria e Brico Bread fazem parte da coleção. Para continuamente ampliar os exemplares, Smedt está sempre viajando pelos quatro cantos do planeta, colhendo e estudando novos levain.
O material não é aberto ao público em geral, mas no site www.questforsourdough.com, em inglês, é possível ter mais informações sobre os itens catalogados, conferir curiosidades sobre o processo de fermentação natural, acessar receitas e até cadastrar o seu próprio levain, contando um pouco como foi feito e outras características que ache interessante, como já fizeram mais de dois mil orgulhosos autores. Em tempo, por sua relevância histórica, o primeiro registro da biblioteca foi uma amostra de um fermento de Altamura, no Sul da Itália, usado na produção do pão na região, um dos mais antigos do mundo, identificado em registros datados de 37 a.C.
Aventurando-se a produzir seu próprio levain
O bom levain é o segredo dos melhores pães artesanais com fermentação natural. Uma vez criado, vira um organismo vivo e que, se bem cuidado e alimentado, pode durar muitos anos. É tão precioso para o resultado final que padeiros, padarias – e o BigLar, claro – têm o seu e já existe até uma biblioteca para catalogar os diferentes tipos cultivados ao redor do mundo (veja Box). Muitas vezes, é passado de geração para geração como um presente. Pode parecer tudo muito complicado e até estranho, mas o processo é simples, só exige cuidado, paciência e atenção.
São duas as principais maneiras de criar o seu levain do zero. Na primeira, basta misturar cerca de 20 g da farinha de sua preferência (branca, integral ou de centeio) à mesma proporção de água. Deixe repousar de um dia para o outro em um recipiente coberto com um pano, mas que permita a passagem de ar. Diariamente, vá acrescentando água e mais farinha, por cerca de quatro a seis dias. Você saberá que está pronto quando começarem a surgir bolhas de ar na mistura, o que indica que a cultura de micro-organismos está viva e estável. A partir daí, é só hidratar e alimentar seu levain regularmente, variando a proporção de água e farinha acrescentados entre 50% e 100%, de acordo com a textura desejada. Por exemplo, se o fermento tem 50 g, adicione 50 g de farinha e 50 ml de água para uma consistência mais mole. Para uma alternativa mais firme, coloque a metade da água, 25 ml.
O segundo jeito é recorrendo a um líquido já fermentado no lugar da água, como caldo de cana, suco de frutas ou algum outro produto natural rico em açúcares, que já contenha tudo o que é necessário para facilitar a reprodução dos micro-organismos responsáveis pela liberação dos gases e ácidos para a formação do levain, adicionando, da mesma maneira, a farinha escolhida, na mesma proporção. Os sabores não influenciam, em nada, o paladar na produção do pão, já que o processo de fermentação elimina todas as características iniciais dos líquidos. Criado o levain, é aconselhável guardar sob refrigeração e ativá-lo toda vez que for usá-lo para fazer seu pão, ou seja, retirar da geladeira, alimentar o levain e aguardar um tempo em temperatura ambiente, que varia conforme a quantidade desejada. Pronto, já pode começar sua própria tradição artesanal!