Rótulos que resultam da fusão perfeita de duas ou mais variedades de uvas, os blends são o retrato da evolução vitivinícola através dos tempos
Um processo químico com toques filosóficos e surgido durante a Idade Média, a alquimia tinha como um dos princípios básicos a transformação de metais inferiores em ouro. A falta de base científica, no entanto, fez com que a prática caísse em desuso, mas alguns dos conceitos, como a mistura de elementos distintos para a criação de algo novo e único, continuaram a ser usados em vários campos da ciência moderna.
Essa fusão de elementos é o que assemelha a alquimia à técnica de blends de vinho, uma área dentro da enologia, a ciência relacionada às questões de produção da bebida. Palavra inglesa que significa “mistura”, os blends – também chamados de “assamblage” ou “vinhos de corte” – são rótulos produzidos a partir da mistura de diferentes variedades (varietais) de uvas, ou com a mesma varietal, porém originadas de variados vinhedos, terroirs, regiões ou safras. A ideia é adicionar características próprias às misturas e fazer alguns pequenos ajustes técnicos.
Processo antigo
A prática de fazer blends da bebida é tão antiga quanto os primórdios da cultura vitivinícola. Uvas tintas e brancas eram misturadas sem grande distinção para produzir vinhos durante a Antiguidade. Esse costume se perpetua até hoje em regiões como a toscana Chianti, em que se permite a união das uvas Trebbiano (branca) com a majoritária Sangiovese (tinta).
“O cultivo das uvas viníferas foi largamente propagado no continente europeu e, no passado, com as precárias condições tecnológicas, o agricultor tinha que se valer do conhecimento empírico, entender as estações do ano, clima, solo, o que fazer durante intempéries, com escassez de água. Enfim, tinham que lançar mão de vários artifícios para garantir que ao fim colheria uvas saudáveis”, explica Luiz Roberto Correa Lima, sommelier da Cave Noble BigLar.
Pela sobrevivência dos vinhedos
O costume de plantar diversas variedades de uva no mesmo espaço foi propagado pelos produtores durante a grande praga da filoxera, que atacou e destruiu vinhas por toda a Europa em meados do século XIX. “Com todas essas adversidades e para se proteger, os produtores plantavam em apenas um hectare diversas varietais, usando variedades precoces, outras de amadurecimento mediano e outras mais longevo, fazendo tudo o que podiam para garantir sucesso na colheita e assim produzir um bom vinho”, esclarece.
De acordo com Luiz Roberto, essa luta pela sobrevivência das vinícolas é o alicerce do desenvolvimento e perpetuação da cultura europeia de produzir vinhos de blend, inclusive em relação à evolução tecnológica observada nas últimas décadas. “O enólogo tem no blend a possibilidade de aportar ao vinho características entregues por cada casta usada por ele, tais como acidez, álcool, aroma, cor, corpo, equilíbrio, estrutura, tanino, etc.”, diz Luiz Roberto.
Em um comparativo entre os blends feitos na Europa e os do chamado “Novo Mundo” – especialmente Argentina e Chile –, o sommelier do BigLar explica que as misturas europeias são “elegantes” e seguem uma receita tradicional, com teor alcoólico mais suave e boa capacidade de envelhecimento. “Já os blends do Novo Mundo são para um consumo mais imediato, com boa extração da fruta que leva à concentração, intensidade, teor alcoólico mais generoso e taninos firmes, com passagem por madeira e o emprego de modernas tecnologias”, explica.
Blends famosos
O mundo dos vinhos reserva diversos blends clássicos, que consagraram a região em que são produzidos. Conheça a seguir misturas que se transformaram em verdadeiros ícones junto aos apreciadores da bebida:
Bordeaux: mais tradicional e conhecida região vinícola do mundo, a francesa Bordeaux se notabilizou pelos seus vinhos de blend com passagem por carvalho francês, o famoso “corte bordalês”. “A base dos vinhos é feita com as uvas Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot e Petit Verdot”, explica Luiz Roberto. Há ainda vinhos brancos feitos com blends na região. Nesse caso, as principais uvas usadas são Sémillon, Sauvignon Blanc e Muscadelle. A proporção de cada uva em uma bebida varia de denominação para denominação e também da receita de cada produtor.
Champagne: sinônimo de glamour e requinte, a região de Champagne, no nordeste da França, produz vinhos espumantes mundialmente conhecidos com as uvas Pinot Noir, Pinot Meunier e Chardonnay. “É a região produtora com enorme quantidade de vinhos de guarda, armazenados em tonéis para serem acrescentados aos blends. Isso é muito comum na região, pois para manter a identidade, a personalidade e o caráter dos seus champagnes, a cada safra, os produtores lançam mão do uso desses blends nos seus vinhos”, diz o sommelier.
Rhône: situado no sudeste da França, o Vale do Rhône tem blends de vinho com fama internacional, feitos de castas tintas, como Grenache Cinsault, Syrah e Mourvèdre, e brancas, como Viognier e Picardan.
Porto: vinho fortificado português, possui o status de ser a primeira demarcação da bebida no mundo. Destacam-se as castas tintas (Amarela, Barroca, Roriz, Touriga Francesa, Touriga Nacional e Tinto Cão), e brancas (Malvasia Fina, Viosinho, Donzelinho e Gouveio). “O vinho do Porto sempre será um vinho de blend de várias uvas, ora por cofermentação, ora por vinhos feitos separadamente”, ressalta Luiz Roberto.
Alentejanos: o Alentejo, localizado ao sul de Portugal, também guarda a cultura dos vinhos de blend. As principais castas são Trincadeira e Aragonês, além das francesas Alicante, Bouschet e Syrah, adicionadas aos cortes dos rótulos alentejanos a partir do final do século XX.