No universo da gastronomia, a presença feminina segue crescente e as mulheres destacam-se cada vez mais nos mais variados ramos de atividade
Nos últimos anos, as mulheres conquistaram mais espaço e protagonismo no universo da gastronomia, com diversas brasileiras ganhando holofotes em diferentes áreas desse setor – sejam sommeliers, baristas, chefs de cozinha, chef de pâtisserie, empreendedoras, etc. Inclusive, uma tendência para 2023 é a presença de mais mulheres nos variados ramos da arte gastronômica.
Para comemorar o Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, o BigLar conversou com grandes nomes da gastronomia brasileira, como a sommelière Marina Giuberti, “maître caviste” [“mestre cavista”] estrangeira na França; a chef Juliana Nicoli, atualmente à frente da Barilla – líder mundial na fabricação de massas -; e a barista e mestre de torras, Amandha Ramos, especialista em cafés especiais.
Paixão por vinhos e saúde
Com um currículo de tirar o fôlego, vivências no mundo enogastronômico e uma habilidade magnífica com vinhos, Marina Giuberti é referência como sommelière. À frente da cave Divvino, localizada em Paris, na França, a profissional capixaba recebeu o título de “maître caviste” recentemente pela Federação dos Cavistas da França.
“Desde criança, a sommellerie me chamou a atenção. Me interessava saber tudo sobre o universo dos vinhos, as regiões, a geografia, identificar os aromas de cada vinho degustado, o produtor, a filosofia dele, os métodos de vinificação”, conta Giuberti ao BigLar. E tudo começou ainda na infância, quando ela teve muito contato com a arte da gastronomia.
A sommelière explica que sua história com esse universo começou desde pequena: “Venho de uma família que sempre cozinhou muito bem, tanto a minha mãe quanto as minhas avós. Então, tenho um histórico gastronômico familiar. E também bebiam-se vinhos de qualidade em casa. […] Sempre sonhei em fazer gastronomia, mas como eu venho de uma família tradicional, acabei fazendo nutrição clínica. É uma formação que eu gosto muito e que me ajuda muito até hoje a enxergar o vinho de outra forma”.
Com isso, Giuberti fez Nutrição Clínica no Rio de Janeiro. “Entrei na gastronomia pela nutrição através de uma ideia de que a gastronomia e o vinho vão trazer saúde também.” Após a sua formação, a profissional decidiu ir para o Piemonte, na Itália, para cursar um master em Food and Wine (“Comida e Vinho”, em tradução livre).
Durante esse período, a profissional estagiou em um restaurante três estrelas Michelin, o Le Calandre. “Foi um percurso muito interessante profissionalmente porque eu fiz desde o laboratório de confeitaria, passando pelas entradas e pratos até o serviço de sala, ajudando a sommellerie”, fala.
Pouco depois, já em Milão e trabalhando em outro restaurante, uma amiga, a chef Ariani Malouf, incentivou-a a ir para a França. Lá em Paris, começou a viver um novo momento da carreira: “Meu objetivo era trabalhar em restaurantes estrelados franceses e muita coisa mudou”.
Marina Giuberti
Sommelière
“Desde criança, a sommellerie me chamou a atenção. Me interessava saber tudo sobre o universo dos vinhos”
Logo após, foi trabalhar no La Bigarrade, outro restaurante da capital francesa. E apesar da correira, a profissional conta que foi importantíssimo para sua profissão: “Meu objetivo era construir uma carreira na alta gastronomia, hoje eu vejo que foram boas escolhas que eu fiz naquele momento”.
Após alguns anos na França, Giuberti decidiu fazer a formação francesa de sommelier, na Chateauneuf du Pape, ao longo de dois anos. “Não é a escola que concede o título, mas o governo, então eu fui a primeira brasileira a obter um brevet professionnel (BP) de sommelier na França”, conta.
Na sequência, foi trabalhar em uma enoteca, começando como estagiária até se tornar a responsável pelo local. “Nessa época eu já sabia que queria abrir um negócio próprio, não sabia se seria uma loja de vinhos, um wine bar ou um restaurante. Logo depois, decidi que seria uma loja de vinhos”, afirma. Em 2013, fundou o Divvino Charonne e, três anos depois, o Divvino Marais: “Desde a abertura, já existia esse conceito de uma cave fundada por uma sommelier, aconselhando harmonização entre vinhos e pratos”.
“A cave Divvino era um sonho, sempre tive vontade de empreender. E continuo afirmando que empreender é para poucos e fortes porque requer não ter totalmente férias nem feriados, sempre pode acontecer alguma coisa. Neste ano é um ano histórico, vamos comemorar dez anos, ela abriu como uma cave de bairro, aqui tem essa tradição de comércio de bairro”, afirma. A Divvino foi eleita uma das 100 melhores lojas de vinho da França e, não à toa, é um empreendimento de uma profissional como Marina Giuberti.
Amor que não desaparece
Quem viu a inesquecível Juliana Nicoli na edição de 2019 do Masterchef Brasil Amadores, chegando ao quarto lugar da maior competição de gastronomia do país, nem imagina que a profissional quase não entrou para o universo gastronômico, apesar do imenso amor pela arte de cozinhar.
“Logo aos 12 anos, uma hérnia de disco quase me deixou paraplégica, o que me proporcionou uma adolescência desafiadora. Quando eu estava na faculdade de nutrição, minha avó foi diagnosticada com Doença de Alzheimer, fator decisivo para troca da minha graduação por enfermagem”, conta Nicoli.
Ao longo de seis anos, a profissional atuou na assistência de enfermagem e, após isso, quatro anos como administrativo em ações de saúde pública, o que “rendeu grande aprendizagem e amadurecimento”, conforme relata ao BigLar. “Apesar do sucesso profissional, minha paixão sempre esteve na arte da gastronomia, o que me fez planejar a mudar de profissão”, revela.
“Com o tempo fui criando amor pela cozinha e pelos sorrisos nas pessoas que comiam o que eu fazia… foi silencioso esse amor, mas avassalador. A ponto de mudar de carreira”, acrescenta.
Em 2019, após a insistência de amigos e familiares, Juliana Nicoli se inscreveu no Masterchef. O resto é história… A competidora ganhou o coração de milhares de brasileiros e foi a Top 4 na competição gastronômica: “Ainda me pergunto se tudo isso é realidade. Hoje sigo atuando em meu sonho, na gastronomia, como havia planejado”, fala.
Pouco depois do programa, Nicoli foi estudar na Le Cordon Bleu em São Paulo, conquistando o Diplome de Cuisine, além do título de Mosaico de Peixes com o “Naje Refrescante” – prato que, hoje, integra as receitas ministradas no curso. Atualmente, é chef de cozinha da Barilla, líder mundial na fabricação de massas.
“Massas e gastronomia italiana vem da minha essência familiar. Algo que temos à mesa sempre. Confesso que não esperava trabalhar diretamente com massas. A Barilla me abriu o olhar e o amor pelas massas. Hoje, tem sido encantador transformar o mundo de massas em inúmeras possibilidades de uma gastronomia não somente italiana, mas pensando na saudabilidade e no amor pelo próximo com as massas no dia a dia”, fala.
Ainda, completa: “Cozinha, além de amor, é organização, detalhes e cuidados. O ato de cozinhar começa na escolha dos produtores [que vão entregar os produtos] e dos ingredientes, no cuidado com a origem de tudo. Segue com cuidado no preparo, higiene do ambiente, cuidados com as pessoas que trabalham juntos de você e claro tudo aquilo que passa para a comida! Trabalhar com carinho e amor é uma forma de entregar ao cliente esses sentimentos. […] Está no processo como todo”.
Juliana Nicoli
Chef
“Com o tempo fui criando amor pela cozinha e pelos sorrisos nas pessoas que comiam o que eu fazia… foi silencioso esse amor, mas avassalador. A ponto de mudar de carreira””
Mas o mundo das chefs de cozinha também tem desafios. Nicoli fala: “A gastronomia é algo incrível, mas é um ambiente ainda muito masculinizado. Difícil de incorporar a igualdade de gêneros e tem histórico de remuneração ruim. O glamour mostrado na TV e em programas de gastronomia está longe da realidade das cozinhas brasileiras, em que são horas de trabalho em pé, trabalho braçal intenso e pouca mão de obra nos locais”.
Juliana Nicoli, porém, encoraja as mulheres apaixonadas pela gastronomia: “Não se intimidem pelo machismo e pelos desafios da cozinha, Façam, treinem, estudem, se aperfeiçoem como profissionais e enfrentem o desafio de ser chef. Cozinhar é amor, determinação, muito estudo e repetição.”
Um olhar sobre as baristas e Mestres de Torra
Barista profissional e mestre de torras, com especialização no mercado de cafés especiais, Amandha Ramos tem uma carreira fascinante nesse setor da gastronomia, além de uma relação especial com essa categoria dos grãos.
“Café especial me deu autonomia, me deu clareza em empreender, me trouxe desafios que jamais imaginei superar. Tenho uma conexão quase espiritual com o café. Quando faço ou preparo cafés, é como se eu o ouvisse. […] Passo isso aos meus alunos, explico que café é uma bebida que conversa com você; ele diz o que pode entregar, sei que parece romântico… Mas em qual bebida podemos encontrar tantas complexidades físico-químicas como o café? São mais de mil complexidades e isso no mínimo é fascinante”, conta Ramos.
Ao revisitar sua trajetória, a profissional conta ser “muito emocionante rever seus passos” e início da carreira. Além das conquistas, Amandha Ramos tem uma relação afetiva com o café: “Meu pai passava café às 4h30 da manhã. O aroma me despertava e me fazia sorrir. Eu sabia que era um novo dia. Desde muito pequena, considero o café intrigante porque seu cheiro lembra a vida”.
Ramos conta que começou sua história com o café em 2009 – quando não se falava sobre os cafés especiais. “Fui trabalhar na illy café Sud América quando ela veio ao Brasil. Neste período, conheci o café especial em forma de grãos e de cápsulas. Me lembro que me apaixonei pelos grãos e a illy sempre teve tecnologias à frente nesse sentido. O tempo passou e resolvi me especializar em grãos”, relembra.
“Fui para Belo Horizonte e me formei na Academia do Café como Mestre de Torras, classificadora de cafés especiais e barista pelas mãos do Will Barista da Will coffee Brasil. […] [Na época] Tirei um tempo para estudos e me dediquei a finco em cafés especiais, me tornando especialista e sempre treinando análise sensorial”, acrescenta.
Amandha Ramos
barista profissional e mestre de torras
“Meu pai passava café às 4h30 da manhã. O aroma me despertava e me fazia sorrir. Eu sabia que era um novo dia. Desde muito pequena, considero o café intrigante porque seu cheiro lembra a vida”
A barista foi crescendo profissionalmente e passou a ministrar aulas, além de desenhar consultorias para os interessados a participar desse universo. E, com isso, sentiu a necessidade de elaborar uma marca que tinha a perspectiva de uma especialista em cafés e, assim, nasceu a “Amandha Barista Cafés Especiais”, indicada pela Revista Espresso em 2021.
Sobre a diferença entre barista e mestre de torras, a profissional explica que o primeiro “é o profissional que prepara a bebida em seu estado em grãos e que já está torrado pelas mãos do mestre de torras, que elabora a bebida e consolida receitas a base de café, seja espresso ou filtrados (coados) parte do ponto do café torrado e em grãos, em outras palavras, ele dará vida ao café e prepará-lo ao consumo final”.
O meio era majoritariamente masculino quando a profissional começou a integrá-lo, o que foi um desafio. “Os homens dominavam [a área], e uma vendedora de café era algo inusitado. Eu era rodeada de homens mais velhos e colegas de trabalho que tinham a função de evidenciar o café através da área comercial, o que causava muito disputa […] Ser mulher é um desafio. Enfrentamos um mundo onde temos que nos provar a todo momento. No café, não é diferente.”, desabafa.
Se pudesse aconselhar outras mulheres que desejam estar nesse ramo, além de encorajá-las a conhecer mais da arte do café, a profissional declara: “Estudem ao máximo, sejam curiosas, enfrentem os cafezais, desbravem as plantações, aprendam física e química, venham operar maquinários enormes, porque o mundo é nosso”.